Comunidades extrativistas, indígenas e quilombolas fazem reivindicações a governos pelo acesso à energia limpa

O II Encontro Energia e Comunidades reuniu, em Belém, lideranças da Amazônia brasileira, representantes de governos, do terceiro setor, pesquisadores e empresas para debater a universalização da energia elétrica para comunidades tradicionais

Nos dias 9, 10 e 11 de maio, cerca de 300 pessoas se reuniram para discutir como levar energia elétrica de qualidade para locais fora dos centros urbanos da Amazônia Legal, ou seja, para as cerca de um milhão de pessoas que ainda vivem sem acesso ao recurso. Na ocasião, lideranças indígenas, quilombolas, extrativistas, representantes de cinco ministérios, de governos estaduais, do terceiro setor, empresas de geração distribuída e pesquisadores se encontraram para escutar as demandas locais, trocar informações e debater soluções para os problemas apresentados. Do encontro saiu um documento com as reivindicações das comunidades, que foi apresentado às autoridades presentes. O documento será encaminhado ainda à Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), ao Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), aos governos estaduais da Amazônia Legal e distribuidoras de energia na região e a outros ministérios que têm interface com o tema, como o de Povos Indígenas e de Planejamento.

Fotos: Vandenilson dos Anjos/ Rede Energia e Comunidades

Os trabalhos foram iniciados com discussões separadas por grupos de extrativistas, indígenas e quilombolas. Esse foi o momento das comunidades de diversos lugares da Amazônia apresentarem suas próprias necessidades, demandas e propostas. “Comunidade nenhuma no mundo consegue se desenvolver sem energia. Nós não estamos falando de qualquer energia. Estamos falando de energia limpa, não à base de combustível fóssil. Nós garantimos a floresta viva. Nós somos o território. Fazemos parte dele como a biodiversidade, o céu, os rios, a fauna e a flora. Não queremos queimar óleo”, frisou Atanagildo Matos, liderança do Conselho Nacional das Populações Extrativistas (CNS).

Após a primeira mesa plenária composta apenas com as lideranças comunitárias apresentar os resultados dos grupos, e as autoridades na escuta, chegou a hora de formar a mesa de autoridades e representantes dos governos para responderem às críticas, necessidades e reivindicações apresentadas. O evento teve a presença dos ministérios de Minas e Energia (MME), Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar (MDA), Meio Ambiente e Mudança do Clima (MMA), Igualdade Racial (MIR), do Desenvolvimento Social, Família e Combate à Fome (MDS), secretários estaduais e órgãos de governos federais e estaduais. A Secretaria Geral da Presidência da República enviou um vídeo de saudação ao evento, convidando a todos presentes a participarem do processo de construção do Plano Plurianual Participativo, que se inicia agora em maio. 

“O Brasil precisa saber que na floresta tem gente, nos maretórios têm gente, que na terra tem gente: vivendo, conservando, e produzindo nesse todo ambiente. Essa é umas das metas deste governo: fazer saber que na floresta tem gente”, destacou Edel Moraes, Secretária Nacional de Povos e Comunidades Tradicionais e Desenvolvimento Rural Sustentável do MMA.

Do Instituto de Energia e Meio Ambiente (IEMA), estiveram presentes Ricardo Baitelo, Vinicius Silva, Fabio Galdino e Isis Nóbile Diniz. Silva participou de duas mesas de debate: “Soluções e boas práticas de acesso à energia e de energia como vetor de desenvolvimento local”, como palestrante, e “Articulação e transversalidade com programas federais de desenvolvimento e redução da pobreza, usos produtivos da energia”, como mediador. Além disso, a equipe fez parte da organização do evento antes, durante e pós.

Ao fim da segunda mesa, ele fez uma fala lembrando do Programa Mais Luz para a Amazônia, que tinha a meta de atender cerca de um milhão de pessoas sem acesso à energia elétrica no local entre os anos de 2020 a 2022, mas apenas 5% do número dos sistemas foram implantados nesse período, tanto que o governos postergou o prazo de atendimento para 2030. “Se o programa continuar na velocidade em que está, vamos conseguir universalizar o acesso à energia elétrica apenas em 2040. É um programa que precisa ser revisto e redesenhado para garantir o acesso o mais rápido possível a todos e também garantir que essa energia seja sustentável ao longo do tempo”, disse Silva. “Estamos falando de uma região que precisa de energia de qualidade, de saneamento básico e que todo sistema seja articulado em diversas políticas públicas prevendo, inclusive, a gerenciamento dos resíduos inseridos na Amazônia”, completou. 

Programação

No primeiro dia (9), representantes do poder público, do terceiro setor e líderes comunitários visitaram duas comunidades quilombolas – Santana do Arari e Tartarugueiro, ambas ao lado da Ilha de Marajó – que estão localizadas a cerca de uma hora e meia de barco da capital Belém, mas ainda não têm acesso à energia elétrica qualidade. Durante a visita, houve uma conversa entre os moradores e os visitantes para trocar informações. Além disso, na noite do primeiro dia, aconteceu a abertura do evento com representantes do governo, líderes locais e do terceiro setor. 

No segundo dia (10), representantes do governo e líderes comunitários apresentaram as localidades sem energia elétrica e os problemas decorrentes da falta dela e as dificuldades em universalizar o acesso nos prazos previamente contratados. Por mais de cinco horas os participantes se dividiram em três grupos – indígenas, extrativistas e quilombolas – para organizar as demandas referentes à universalização do acesso à energia elétrica de qualidade.

“Antes da chegada de qualquer empreendimento de energia temos de ser consultados sobre o uso do nosso território porque estamos cansados dos empresários virem e ganhar dinheiro, não termos energia e ainda explodirem quilômetros de rio com dinamite. Precisamos ser ouvidos”, afirmou Hilário Morais, da Malungu (Coordenação Estadual das Associações das Comunidades Remanescentes de Quilombo do Pará).

De modo geral, identificou-se que as localidades têm várias potências para geração de energia elétrica renovável como solar, eólica e a partir da água e biomassa. Há o desafio de acessar as comunidades, inseridas na floresta e geralmente com acesso apenas por barco, e também debateu-se a questão da manutenção dos sistemas que são instalados.

Uma demanda presente nos relatos de todos os grupos foi a necessidade de energia elétrica para processar os produtos, alimentos e armazená-los nas próprias comunidades. A energia elétrica de qualidade pode melhorar a qualidade de vida de populações à margem dos serviços públicos, e também gerar renda. Um exemplo é a despolpadeira de açaí. Se vendido mais processado, as pessoas que vivem apenas do extrativismo podem comercializar um produto de maior valor agregado. Tendo como consequência, inclusive, uma autonomia financeira.

“Não precisamos mais de hidrelétricas que matem pessoas, animais e floresta. Mas precisamos de energia limpa, saudável e de baixo custo. Não só para uma lâmpada. Todos nós temos direito a bens que facilitem nosso trabalho. Tudo que é bom, que melhora a qualidade de vida, é bem-vindo. Não é bem-vindo aquilo que mata e destrói a nossa identidade”, afirmou Concita Sompré, presidente da Federação dos Povos Indígenas do Pará (Fepipa).

No último dia (11), foram apresentados projetos que trazem soluções com boas práticas que atendem às necessidades energéticas dessas populações, como barcos elétricos, sistemas de bombeamento solar de água e kits de iluminação solar, carregadores de celular e minirredes de distribuição de energia limpa operados pelas próprias comunidades. O depoimento emocionado sobre uso de energia solar que funciona há anos em comunidades tradicionais foi um importante contraponto às diversas narrativas de aplicações que não foram bem sucedidas. 

Por fim, uma nova rodada com as autoridades para apresentações das responsabilidades de cada ministério e para que os presentes pudessem levar diretamente aos representantes do governo ali questões bem pontuais, como cobrança indevida por sistemas inoperantes, falta de resposta das concessionárias e até mesmo questões fundiárias. 

Sem energia elétrica

Santana do Arari tem um poço artesiano que conta com um gerador de energia a diesel, barulhento e poluidor, para bombear água para as casas. Esse é o único fornecimento de energia pública. Próximo ao local, há uma escola pública que atende até a nona série sem energia elétrica. As crianças estudam sem acesso à internet e sob o calor amazônico nas salas de aulas sem ventilador.  

As poucas residências com um painel solar no teto tiveram esse investimento feito pelos próprios moradores, geralmente, pessoas com mais recursos financeiros. Vale lembrar que a comunidade vive da venda do açaí, da pesca e de outras atividades mais localizadas. O acesso à capital é feito apenas por barcos pontuais, encarecendo a passagem.

Na Comunidade Tartarugueiro, vizinha a Santana do Arari, a uma hora a pé pela floresta, há cerca de 70 famílias vivendo no local. Ela conta com uma escola de ensino médio, onde os alunos precisam caminhar para ir estudar. A escola tem teto direito alto, mas também está sem acesso à internet ou qualquer recurso dependente de energia para acessar outras metodologias didáticas ou mesmo simplesmente reduzir o calor.

Um gerador a diesel é acionado quando a população precisa abastecer as caixas d’água. No demais, vivem sem acesso à energia elétrica pública para exercer outras atividades, inclusive, produtivas. Parte da população vive de agricultura familiar de subsistência e da pesca. Vale ressaltar que, além dos problemas da falta de acesso à energia elétrica, ambos os territórios carecem de demarcação fundiária.

Sobre o encontro e a Rede Energia e Comunidades

O II Encontro Energia e Comunidades é realizado pelas organizações representativas dos beneficiários Coiab, Fepipa, Conaq, Malungo, CNS e pela Rede Energia & Comunidades, formada por um grupo de organizações atentas à causa do pleno direito ao acesso à energia sustentável, conforme preconiza a legislação brasileira e o Objetivo do Desenvolvimento Sustentável (ODS) número sete (ODS#7) da Organização das Nações Unidas (ONU). 

Entre as organizações que fazem parte da Rede Energia & Comunidades, essas apoiaram o evento: Frente por uma Nova Política Energética para o Brasil, Fórum de Energias Renováveis de Roraima, Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), Instituto Clima e Sociedade (iCS), Instituto de Energia e Meio Ambiente (IEMA), International Energy Initiative – IEI Brasil, Instituto Socioambiental (ISA), Litro de Luz, Projeto Saúde e Alegria (PSA), WWF-Brasil e Fundação Mott.  Mesmo sem fazer parte da rede, o evento também teve o apoio da Associação Brasileira de Geração Distribuída (ABGD). 

Saiba mais no site: www.energiaecomunidades.com.br