Demandas socioambientais de amazônidas devem ser consideradas nos indicadores do novo Plano Nacional de Logística, apontam IEMA, GT Infra e ISA

Em conjunto com o Ministério dos Transportes, organizações da sociedade civil debateram diretrizes sociais e ambientais para a logística da Amazônia, em Brasília

Jacilene Pedroso Lopes vive às margens do rio Tapajós há décadas. Pescadora, mãe, conhece cada curva do rio como quem vive na própria casa. Mas, hoje, quando lança a rede, volta com ela quase vazia. “Falta peixe”, lamenta, olhando para as águas que sustentaram sua família por gerações. “O governo precisa saber: tem vidas nas reservas do Tapajós”, ressalta Lopes. A voz da pescadora, que faz parte da Federação das Organizações e Comunidades Tradicionais da Floresta Nacional do Tapajós, ecoou na sexta-feira (12) em Brasília, onde lideranças amazônidas se reuniram com o Ministério dos Transportes para uma missão urgente: garantir que o futuro da infraestrutura brasileira não destrua o presente de quem vive na floresta.

O 2º Workshop de Grupo Focal para o Plano Nacional de Logística (PNL 2050) foi promovido pelo Ministério dos Transportes (MT), Instituto de Energia e Meio Ambiente (IEMA), Grupo de Trabalho Infraestrutura e Justiça Socioambiental (GT Infra) e Instituto Socioambiental (ISA). O encontro teve como objetivo debater e aprimorar os critérios socioambientais apresentados na consulta pública “Indicadores Socioambientais e Climáticos para o Plano Nacional de Logística 2050”, e aberta para contribuição. Estes critérios foram desenvolvidos para consolidar a incorporação da análise de riscos e impactos socioambientais e climáticos ao planejamento de transportes de longo prazo.

O texto apresentado e disponibilizado pelo Ministério dos Transportes na consulta pública, resumidamente, aponta que os riscos para a infraestrutura incluem trechos expostos a inundações, deslizamentos e secas, afetando especialmente a malha rodoviária e hidroviária. Já os riscos decorrentes da infraestrutura abrangem impactos sobre terras indígenas, quilombolas e comunidades vulneráveis, além de conflitos sociais. Também se destacam danos ambientais, como supressão de vegetação, perda de patrimônio espeleológico e atropelamento de fauna em Unidades de Conservação. Por fim, há o agravamento das emissões de gases de efeito estufa, medidas por transporte, investimento e ciclo de vida da infraestrutura.

Aprimoramento dos indicadores socioambientais

De modo geral, os indicadores apresentados pelo governo focaram mais na infraestrutura. Por conta disso, durante o encontro, especialistas do terceiro setor, lideranças de organizações comunitárias amazônidas e pesquisadores propuseram que fossem considerados impactos mais amplos sobre territórios e meios de vida de populações locais associados a fatores como grilagem de terras públicas, crimes ambientais e falta de reconhecimento de direitos territoriais de comunidades tradicionais. Uma das principais questões levantadas foi a falta de indicadores sobre os riscos socioambientais de hidrovias que fazem parte de corredores logísticos do agronegócio e de indústrias de mineração. Houve preocupação com a dragagem de rios, especialmente referente aos peixes e espécies da fauna em geral, assim à agricultura de várzea e à navegação de pequenas embarcações.

Desse modo, houve troca de informações e dados que poderiam contribuir para um plano logístico de infraestrutura onde os critérios socioambientais possam ser mais efetivos e indicar caminhos mais seguros para a construção de corredores logísticos no território nacional.

Em relação aos critérios apresentados, os principais temas para melhoria nos indicadores, apontados pelos amazônidas, pesquisadores e especialistas do terceiro setor foram: análise de alternativas para os traçados dos transportes e de impactos cumulativos e indiretos das obras; dados detalhados sobre hidrovias, portos, cargas, passageiros, acidentes e conflitos territoriais; critérios socioambientais com governança territorial, bem-estar, aspectos socioculturais, ecossistemas e mudanças climáticas; necessidade de integração a outros planos setoriais e de medidas para salvaguardar terras públicas não destinadas; consulta Livre, Prévia e Informada com participação das comunidades afetadas; indicadores e análises menos fragmentadas de obras, com visão sistêmica dos projetos; urgência de institucionalizar o planejamento, vinculando-o ao orçamento público e consolidando critérios socioambientais em política de Estado.

Mariel Nakane, do Instituto Socioambiental (ISA), enaltece a importância da abertura do debate com as comunidades impactadas, a academia e a sociedade civil: “Os indicadores socioambientais do PNL 2050 podem refletir o acúmulo que a sociedade tem com as experiências negativas de projetos de transportes, e aproveitar a oportunidade de inaugurar um legado no planejamento setorial de transportes comprometido com não reproduzir os mesmos erros anteriores”.

Renata Utsunomiya, do GT Infraestrutura e Justiça Socioambiental, destacou a necessidade da inserção de dados sobre cargas, passageiros, riscos e acidentes, portos e conflitos territoriais e reforçou que a emissão de gases efeito estufa não pode ser critério único no modal. “É preciso considerar como diferentes ameaças interagem e afetam o território”, diz Utsunomiya.

Alinhar o planejamento de infraestruturas de transportes de forma integrada a outros planos setoriais, em especial o Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal (PPCDAm), foi um dos principais pontos levantados por André Luís Ferreira, diretor-executivo do Instituto de Energia e Meio Ambiente (IEMA). Em relação ao planejamento, Ferreira apontou que é essencial elencar quais são as alternativas para resolver os problemas de infraestrutura existentes, os riscos sociais e ambientais de cada uma das alternativas, e como comparar essas alternativas e selecionar os projetos, considerando que existem indicadores de dimensões muito distintas como econômicos, sociais e ambientais. 

Aliás, projeções da matriz origem-destino disponibilizadas pelo MT apontam que, até 2050, a produção de milho na região da Amazônia Legal deve triplicar, de 47 milhões para 133 milhões de toneladas. “Historicamente há uma pressão para essas mercadorias saírem pelo Arco Norte, passando por regiões do Madeira, do Tapajós-Xingu e do Tocantins-Araguaia. Mas há várias alternativas que devem ser avaliadas”, afirmou.

A falta de avaliação de alternativas e o subdimensionamento de impactos de obras foram reforçados por William Leles, do Centro de Sensoriamento Remoto da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Ao apresentar projeções para a Ferrogrão (EF-170), ele demonstrou que, em vez de reduzir pressões, a obra tende a intensificar a movimentação de cargas na região, aumentando conflitos. “Se ela for construída, a movimentação no local aumenta, inclusive em rodovias. Isso vai trazer conflito de terras e mais impacto”.

Segundo o pesquisador, é preciso considerar que os efeitos de uma ferrovia não se limitam ao traçado da obra, mas se estendem do ponto de origem da mercadoria até o de embarque. “Não tem limite para impacto causado”, afirmou. Dados apresentados pelo pesquisador apontaram que a alternativa do Corredor Leste-Oeste (das ferrovias Fico-Fiol) pode gerar menos impacto ambiental e ainda contribuir para aliviar a sobrecarga logística em Mato Grosso.

Bruno Ab’Saber, representante do Ministério do Meio Ambiente, destacou a importância de considerar as terras públicas não destinadas no planejamento que, de acordo com dados estimados apresentados, somam 120 milhões de hectares, sendo 40 milhões federais e 80 milhões estaduais. “É difícil você ter um nível de fiscalização nessas áreas, isso faz com que elas sejam um ímã onde uma diversa gama de atores e fenômenos se dirigem, com diferentes impactos sobre os ecossistemas, sobre os povos indígenas, povos quilombolas e povos comunidades tradicionais que habitam nessas regiões”, afirmou.


Participação de lideranças amazônidas

Um dos pontos centrais do encontro foi o espaço de participação de lideranças das regiões do Madeira, Tapajós e Tocantins, que reforçaram o histórico de desrespeito à Consulta Livre Prévia e Informada (CLPI), garantida pela  Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). “É responsabilidade do Estado informar quais serão os ônus e bônus de qualquer empreendimento. A proposta do corredor logístico no rio Tapajós, até o momento não aconteceu a CLPI aos povos que estão às margens do rio”, salientou Lucas Tupinambá, vice-presidente do Conselho Indígena Tapajós-Arapiuns.  “Muitas vezes, políticas construídas dentro de gabinetes podem estar destruindo vidas na Amazônia, nas margens de rios da Amazônia. É importante ouvir o nosso povo”, alerta.

Os moradores da região amazônica levaram problemas relacionados aos impactos de obras sem o devido planejamento na vida da população local e no meio ambiente. “Hoje, têm estudos demonstrando o aumento de acidentes no rio Madeira, inclusive de embarcações, e o desafio de fazer navegação”, disse Iremar Ferreira, do Instituto Madeira Vivo. A passagem da balsa e a movimentação de cargas danificam moradias fluviais, várzeas e barrancos, evidenciando a falta de segurança na hidrovia.

Cristiane Vieira da Cunha, Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará, na região do Tocantins-Araguaia, reforçou que é necessária gestão integrada, governança interministerial e intersetorial, compromisso com sustentabilidade e análise cumulativa dos impactos para minimizar impactos. “A hidrovia Tocantins-Araguaia, no modo como está sendo planejada, só poderá ter uma viabilidade futura se outras infraestruturas forem construídas, como uma hidrelétrica. Isso causa impactos múltiplos, sistêmicos.” Projetos analisados de forma fragmentada perdem a visão integral dos problemas, desconsiderando conflitos, impactos sobre comunidades locais e riscos a espécies em extinção, como a Tartaruga-da-Amazônia e o Tracajá.

Na Bacia do Tapajós, grandes projetos geram conflitos sociais e impactos ambientais, incluindo contaminação por agrotóxicos, prejuízos à pesca e à subsistência ribeirinha, agravados pelo transporte de barcaças e dragagem do rio.

Segundo Ferreira, o planejamento deve ir além do Plano Nacional de Logística para ser efetivo, abrangendo todas as etapas do Planejamento Integrado de Transportes (PIT) e planos setoriais, considerando riscos socioambientais. Ele concluiu afirmando que o processo de planejamento deve ser institucionalizado, transformado em lei, para o trabalho não ser descontinuado. “Atualmente, nada impede que o governo execute um projeto que não passou pelas etapas de planejamento. É preciso vincular os produtos resultantes do planejamento setorial ao orçamento público, consolidando esses avanços em uma verdadeira política de Estado.”

Representantes do terceiro setor, pesquisadores e lideranças amazônidas destacaram a satisfação com o espaço aberto para troca de informações e participação da sociedade, reforçando que essa interlocução é essencial para tornar o processo de planejamento de infraestrutura mais transparente, inclusivo e adequado às necessidades socioambientais dos territórios. O encontro ocorreu no âmbito do 6º Plano de Ação Nacional em Governo Aberto.

Em raros momentos da história, lideranças indígenas, ribeirinhos e quilombolas sentaram à mesa com o Ministério dos Transportes para falar sobre o futuro da infraestrutura brasileira, analisando os critérios socioambientais. E não como espectadores, mas como protagonistas da solução.

Também participaram da reunião representantes das organizações: Infra S.A., MapBiomas, Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM), Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e lideranças de territórios da Amazônia, assim como representantes de órgãos públicos: Controladoria-Geral da União (CGU), Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), Infraestrutura Nacional de Dados Espaciais do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (INDE/IBGE), Ministério da Integração e do Desenvolvimento Regional (MIDR), Ministério do Meio Ambiente (MMA), Ministério do Planejamento (MP), Ministério dos Povos Indígenas (MPI), Ministério de Portos e Aeroportos (MPA), Secretaria Especial do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), Secretaria de Participação e Parceria Institucional da Casa Civil da Presidência da República (SEPPI/CC/PR), Subsecretaria de Sustentabilidade do Ministério de Transportes (SUST/MT) e Tribunal de Contas da União (TCU).

Instituto de Energia e Meio Ambiente (IEMA)
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