O Instituto de Energia e Meio Ambiente (IEMA) e o Grupo de Trabalho Infraestrutura e Justiça Socioambiental (GT Infraestrutura) apresentaram contribuições à consulta pública “Indicadores Socioambientais e Climáticos para o Plano Nacional de Logística 2050 (PNL 2050)”, do Ministério dos Transportes, que encerrou na quinta-feira (2/10). O objetivo das propostas é aprimorar a metodologia de planejamento de obras de infraestrutura de transportes no Brasil, para que projetos sejam desenvolvidos a partir de critérios que considerem os riscos sociais, ambientais e climáticos.
Ambos os documentos destacam como avanço o fato de o PNL 2050, pela primeira vez no Brasil, incorporar indicadores para além dos aspectos econômicos, ampliando a análise para riscos sociais, ambientais e climáticos. “No entanto, é importante que os indicadores não sejam apenas listados, mas aplicados efetivamente para orientar a priorização, a exclusão e o monitoramento de projetos de transportes”, ressalta Renata Utsunomiya, pesquisadora do GT Infraestrutura.
As propostas do IEMA e do GT Infra defendem maior abrangência de critérios estabelecidos como a consideração de terras públicas não destinadas e de territórios indígenas, e quilombolas ainda em processo de demarcação, especialmente na Amazônia. Elas chamam atenção para a inclusão de bens sociais e culturais na análise de impactos, o subdimensionamento de áreas afetadas pelas obras e os riscos à biodiversidade, neste caso, como espécies ameaçadas de extinção.
As instituições também recomendaram que o PNL 2050 incorpore instrumentos complementares, como a Avaliação Ambiental Estratégica (AAE) e a Avaliação de Impactos Cumulativos (AIC), para compreender os efeitos agregados de grandes empreendimentos sobre povos e ecossistemas. Além disso, ressaltaram ser importante o PNL 2050 estar alinhado com políticas nacionais já em curso como o Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia (PPCDAm), a Política Nacional sobre Mudança do Clima (PNMC) e a Contribuição Nacionalmente Determinada (NDC, compromissos de cada país membro do Acordo de Paris para reduzir suas emissões) brasileira, entre outros.
“Acima de tudo, ficou claro que esse processo precisa ser institucionalizado. Os indicadores socioambientais só terão efetividade se forem incorporados de forma permanente à estrutura do planejamento de transportes, garantindo sua aplicação independentemente das mudanças de governo. Assim, asseguramos que a avaliação de riscos socioambientais e climáticos não seja uma escolha circunstancial, mas um compromisso de Estado”, afirma André Luis Ferreira, diretor-executivo do IEMA.
Contribuições
O IEMA concentrou suas análises em dois grandes eixos: cobertura e abrangência dos indicadores; e a utilização dos indicadores, focando na forma como eles serão aplicados.
O IEMA propôs:
- Expandir as áreas de influência consideradas, reconhecendo que os efeitos de uma estrada, ferrovia ou hidrovia vão além do seu traçado imediato;
- Incluir variáveis que contemplem terras indígenas em processo de demarcação, comunidades ribeirinhas e populações vulneráveis sem reconhecimento formal;
- Incorporar terras públicas não destinadas, áreas que concentram processos de grilagem, desmatamento e conflitos fundiários;
- Inserir indicadores sobre bens culturais como sítios arqueológicos e áreas sagradas para povos indígenas;
- Ampliar os indicadores ambientais, com a inclusão de fauna aquática, pesca artesanal, queimadas, acidentes e mortes associados às operações logísticas;
- Refinar os indicadores de desmatamento como estabelecendo limiares diferenciados para biomas sensíveis e Unidades de Conservação.
Entre as recomendações, o IEMA orienta que os indicadores sejam condicionantes de viabilidade podendo, assim, descartar empreendimentos de alto risco socioambiental, e que também sejam estabelecidos critérios explícitos de como os indicadores serão priorizados, garantindo a integração entre as dimensões socioambientais, socioeconômicas e econômicas na escolha de corredores.
O GT Infraestrutura e Justiça Socioambiental trouxe uma perspectiva baseada em pesquisas e escutas junto a comunidades diretamente impactadas por corredores logísticos na Amazônia, nos rios Madeira, Tapajós-Xingu e Tocantins-Araguaia. A partir desse processo, identificou três fatores críticos: governança territorial; bem-estar e aspectos socioculturais; e ecossistemas e mudanças climáticas.
Em relação à governança territorial, o GT Infra destacou de forma complementar à proposta do IEMA, a necessidade de considerar nos indicadores:
- Abrangência das áreas de influência com distâncias mais realistas em relação aos impactos;
- Conflitos fundiários e territoriais associados à expansão do agronegócio, portos e loteamentos;
- Garantia de direitos territoriais de terras indígenas, quilombolas e outras comunidades tradicionais, incluindo aquelas em processo de titulação e Inclusão de terras públicas não destinadas como áreas de risco para grilagem e desmatamento;
- Respeito ao direito à consulta livre, prévia e informada (CLPI), previsto na Convenção 169 da OIT, cuja ausência tem intensificado conflitos sociais e ameaças a defensores de direitos humanos.
Sobre bem-estar e aspectos socioculturais, foram elencados impactos que afetam diretamente a vida das comunidades locais, como:
- Insegurança alimentar, associada à redução da disponibilidade de peixes e à contaminação por agrotóxicos;
- Conflitos na pesca artesanal, com restrições ao acesso tradicional a áreas de subsistência;
- Riscos de acidentes em rodovias e hidrovias, além da perda do direito de ir e vir devido à motorização dos rios;
- Ameaças a sítios arqueológicos e bens culturais, frequentemente ignorados nos estudos de viabilidade.
Em relação aos ecossistemas e mudanças climáticas, o GT Infra reforçou a necessidade de incorporar indicadores sobre:
- Conservação: presença de Unidades de Conservação de uso sustentável e proteção integral e áreas prioritárias para conservação e corredores ecológicos (ICMBio);
- Ocorrência de espécies endêmicas, espécies ameaçadas de extinção (IUCN) espécies invasoras;
- Dinâmica dos sedimentos, com alterações na paisagem e na dinâmica de rios causadas por dragagens e derrocagens;
- Contaminação por sedimentos em rios e solos, levando em conta agrotóxicos, pó da soja e óleos, intensificada por atividades portuárias;
- Vulnerabilidade local às mudanças climáticas, como secas severas e enchentes, em territórios tradicionais (queimadas, secas e inundações).
Contexto
Resultados preliminares dessas contribuições foram discutidos no workshop “Indicadores socioambientais para o PNL 2050”, realizado no dia 12 de setembro, em Brasília. O encontro integrou o 2º Workshop de Grupo Focal do PNL 2050, promovido pelo Ministério dos Transportes em parceria com o IEMA, o GT Infra e o Instituto Socioambiental (ISA), no âmbito do 6º Plano de Ação Nacional em Governo Aberto. Na ocasião, além de pesquisadores, lideranças dos territórios do Madeira, Tapajós-Xingu e Tocantins-Araguaia colocaram suas experiências.
O texto disponibilizado pelo Ministério dos Transportes na consulta pública, também apresentado no encontro, indica, em síntese, dois conjuntos principais de riscos. De um lado, os que afetam a própria infraestrutura, como trechos sujeitos a inundações, deslizamentos e secas, com maior impacto sobre rodovias e hidrovias. De outro, os riscos gerados pela infraestrutura, que incluem pressões sobre terras indígenas, quilombolas e comunidades vulneráveis, além de conflitos sociais.
O documento também ressalta danos ambientais, como desmatamento, perda de patrimônio espeleológico e atropelamento de fauna em Unidades de Conservação, assim como o aumento das emissões de gases de efeito estufa, considerando transporte, investimentos e o ciclo de vida das obras.
Ao reunir governo, sociedade civil e representantes de territórios e ao abrir essa escuta, o processo consolida a oportunidade de construir um planejamento de longo prazo para os transportes que seja transparente, participativo e alinhado à proteção da sociobiodiversidade.