Posicionamento crítico: Crise hídrica e propostas para aumentar a resiliência do sistema elétrico e o atendimento de energia no horário de ponta

Nota da Coalizão Energia Limpa alerta sobre risco de crise energética

Histórico

A Coalizão Energia Limpa – transição justa e livre do gás é um grupo brasileiro de organizações da sociedade civil comprometido com a defesa de uma transição energética socialmente justa e ambientalmente sustentável no Brasil que rejeita o uso do gás na matriz elétrica e defende a eliminação desta fonte até 2050.

A Coalizão tem monitorado os impactos do lobby do setor do gás no Congresso Federal, em especial os jabutis na Lei de Privatização da Eletrobras. Naquela ocasião, em 2021, aprovou-se a Lei 14.182/2021, incluindo a contratação de 8 GW de termelétricas inflexíveis distribuídas em quatro regiões do país. O assunto foi detalhado nesta nota técnica após dois anos da publicação da lei e aprofundado neste artigo científico. Atualmente, o PL 576/2021 que cria o marco regulatório das eólicas offshore, pode alterar a obrigatoriedade de contratação de térmicas a gás de 8 para 4,2 GW e incluir a obrigatoriedade de outros 4,9 GW de pequenas centrais hidrelétricas. 

Contexto de crise hídrica e medidas governamentais

Hoje, três anos após a crise hídrica de 2021, volta-se a viver um cenário de risco de desabastecimento. A região Norte tem enfrentado um cenário de redução no nível de chuvas desde o segundo semestre de 2023, em razão do fenômeno El Niño. Em setembro de 2024, o cenário de seca se estende às regiões Nordeste, Sudeste e Centro-Oeste e há incertezas sobre o impacto do fenômeno La Niña entre setembro e novembro.

Na ocasião passada, a escassez de água nos reservatórios das hidrelétricas expôs a vulnerabilidade da segurança do fornecimento do setor elétrico, levando a um aumento significativo da tarifa de energia elétrica por conta da contratação emergencial de termelétricas a gás. Desta vez, a despeito do aumento considerável da capacidade instalada de renováveis, corre-se risco semelhante.

A queda atual no nível dos reservatórios aliada à alta demanda de energia tem colocado o uso de térmicas em sobreaviso. A carga mensal de agosto de 2024, de 79.679 MWmédios, cresceu 3,2% em relação ao registrado em agosto de 2023, de 77.208 MWmédios. Enquanto isso, a Energia Natural Afluente (ENA) prevista para o subsistema SE/CO para o mês de agosto foi de 59%, a segunda pior nesse mês em uma série histórica de 24 anos, semelhante ao verificado em agosto de 2021. Já a Energia Armazenada (EAR) teve previsão, entre maio e agosto, de queda de 17,7% no sistema SE/CO e de 21,5% no subsistema NE.

Em junho de 2024, o ONS (Operador Nacional do Sistema) já havia alterado a operação da UHE Porto Primavera como forma de preservar o nível dos reservatórios da Bacia do Paraná. Em agosto, o Ministério de Minas e Energia (MME) considerou medidas adicionais para garantir a segurança do suprimento de eletricidade durante o período seco. Dentre as adaptações foi antecipado o contrato da Termopernambuco, vencedora do primeiro Leilão de Reserva da Capacidade, em 2021, e evitada a parada programada das usinas nucleares de Angra 1 e Angra 2.

A terceira medida foi a utilização das usinas merchant, termelétricas sem contratos de energia, para oferta adicional de potência no mercado de curto prazo. Nesse caso, vemos que experiências anteriores, como o PCS (Procedimento de Contratação Simplificada), resultaram em enorme prejuízo para o consumidor de eletricidade, além de judicialização, num processo que ainda vai levar anos para ser resolvido.

No final de agosto, a Aneel anunciou o acionamento da bandeira vermelha patamar dois (2) para o mês de setembro. Após revisão dos dados do Programa Mensal de Operação (PMO) pelo Operador Nacional do Sistema (ONS), a bandeira foi reduzida para o patamar vermelho um (1), passando a ser cobrados R$ 4,463 a cada 100 kWh consumidos. As bandeiras tarifárias são cobradas diretamente dos consumidores cativos, e isentas aos consumidores livres, tornando a energia ainda mais cara para os consumidores residenciais brasileiros e, em certa medida, contribuindo para a perpetuação da pobreza energética no país.

Outras propostas consideradas incluem a resposta voluntária da demanda de grandes consumidores e a importação de eletricidade da Argentina e do Uruguai, para o Sistema Interligado Nacional (SIN). Também está prevista a importação de energia elétrica da Venezuela para atender Roraima, único estado não interligado ao SIN. No caso da resposta da demanda, entendemos que é um procedimento que sempre teve resposta positiva por parte de consumidores industriais, com custos bem razoáveis. É uma alternativa preferível a buscar a ampliação da oferta de energia a qualquer preço. Já no caso da importação de eletricidade, se por um lado aumenta-se a segurança do fornecimento de energia, por outro, utiliza-se de uma solução de altíssimo custo variável unitário, entre 590 e 2.200 R$/MWh.

Vale lembrar que o uso de termelétricas encarece a tarifa de eletricidade do consumidor brasileiro. Durante a crise de 2021, por exemplo, o preço médio das termelétricas a gás chegou a R$ 1.599,60/MWh, enquanto as fontes renováveis, como solar e biomassa, apresentaram preços significativamente menores, de R$ 343,00/MWh e R$ 345,20/MWh, respectivamente.

Ainda em setembro, o ONS aprovou ações preventivas para garantir a oferta de energia diante do cenário de chuva abaixo do previsto e temperaturas acima da média histórica. O agravante é a baixa contribuição de energia eólica neste período do ano, ao final do inverno. Entre as ações, está a operação flexível das termelétricas a GNL Santa Cruz e Linhares, a operação excepcional do reservatório intermediário da hidrelétrica de Belo Monte e a entrada em operação das Linhas de Transmissão Porto do Sergipe – Olindina – Sapeaçu, Terminal Rio – Lagos e Leopoldina 2 – Lagos.

O país vive novamente um cenário de risco ao atendimento à demanda de energia, ainda que com alguns aprimoramentos de propostas para solucionar o problema. No curto prazo, o acionamento de termelétricas a combustíveis fósseis é a solução imediata. Mas esta opção deveria ser precedida por solucionar os gargalos de escoamento das energias renováveis. O ONS tem limitado a transmissão de eólicas e solares do Nordeste para o resto do Brasil. A operação conhecida como curtailment ou constrained off já vem acontecendo há alguns anos e os prejuízos estimados superam R$ 620 milhões, de acordo com empresas eólicas e solares.

O avanço das fontes eólicas e solares na matriz elétrica é inexorável. Tratam-se das duas fontes com maior escala, economicidade e capacidade de instalação. Não é exagero posicioná-las como as fontes que mais contribuirão à descarbonização da matriz elétrica brasileira. Desde a aprovação da Lei de Privatização da Eletrobras, em julho de 2021, a capacidade instalada dessas fontes aumentou de 30 para mais de 78 GW, de acordo com a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) e a Associação Brasileira de Energia Solar Fotovoltaica (ABSOLAR). Em termos de energia firme, os 11 mil MWmédios adicionais providos pelas fontes é o dobro dos 5,6 mil MWmédios que seriam ofertados pelas térmicas previstas na Lei.

Apesar dos benefícios econômicos, ambientais e climáticos, o crescimento de energia solar e eólica no sistema elétrico trouxe ao operador o desafio de conciliar essas fontes (que representam atualmente mais de 33% da capacidade instalada) com as hidrelétricas (mais de 46%). A paralisação dessas usinas acontece principalmente em casos de sobreoferta, quando a geração eólica e solar é superior à demanda do sistema. O paradoxo é que enfrentamos, ao mesmo tempo, um problema de sobra de energia em momentos de recurso solar e eólico favoráveis e falta de energia em momentos de pico de demanda, notadamente das 18 às 22 horas.

Propostas para o aumento da resiliência do sistema elétrico

O quadro geral, com déficit de potência em períodos de pico de um lado, e desperdício dessas fontes pelo operador, de outro, torna urgente avaliar todas as opções para aumentar a resiliência do sistema, tanto no curto quanto no longo prazos.

Diversos atores da indústria renovável como ABSOLAR e  ABEEólica vem trabalhando em prol do aprimoramento da regulação para sistemas de armazenamento. A Associação Brasileira de Sistemas de Armazenamento de Energia (ABSAE), a ISA CTEEP (Companhia de Transmissão de Energia Elétrica Paulista), a ABRACE (Associação Brasileira dos Grandes Consumidores de Energia) e outras entidades manifestaram-se na Consulta Pública no. 160/2024 do MME em defesa da inclusão de sistemas de armazenamento de energia no próximo leilão de reserva de capacidade. A instalação de bancos de bateria junto às fontes renováveis pode reduzir flutuações de tensão e fornecer energia firme, aumentando a adequação dessas fontes ao sistema elétrico. Atualmente, os leilões de reserva de capacidade estão restritos às termelétricas e diversos agentes do setor demandam a neutralidade tecnológica como critério para a participação de projetos de energias renováveis. Estudo realizado pela MC&E e RegE Consultoria e comissionado pela ABSOLAR aponta que os sistemas de armazenamento podem ter custo de instalação inferiores a térmicas a gás a partir de 2026. Outras configurações de usinas, como as hidrelétricas reversíveis e usinas híbridas existentes merecem a inclusão no certame.

Para além do leilão, definir um arcabouço legal para os sistemas de armazenamento de energia, valorizando os diferentes serviços prestados ao sistema, desde a integração de energias renováveis até a postergação de investimentos em transmissão e distribuição é imprescindível.

Esta e outras potenciais soluções para o aprimoramento da resiliência do sistema elétrico foram endereçadas na nota técnica Integração de Energias Renováveis ao Sistema Elétrico Brasileiro, lançada pelo Instituto de Energia e Meio Ambiente (IEMA) e pela Coalizão Energia Limpa em agosto de 2024. O documento consolidou percepções de especialistas do setor elétrico sobre a integração das fontes renováveis intermitentes ao sistema, incluindo soluções de armazenamento e de transmissão de eletricidade.

As principais ações para essa integração envolvem mudanças nas áreas de regulação, planejamento, operação e formação de preços. A transição para um sistema elétrico mais robusto passa por adaptar a operação das hidrelétricas, melhorar a capacidade de transmissão,  incorporar novos sistemas de armazenamento de energia e aprimorar a gestão da demanda nos subsistemas do Sistema Interligado Nacional (SIN).

A adaptação das hidrelétricas, para além da oferta de energia elétrica tradicional, é um passo essencial. A operação estratégica dessas usinas pode fornecer novos serviços de armazenamento de energia e atender à demanda de potência em momentos críticos, equilibrando a variabilidade das fontes solar e eólica.

O planejamento a longo prazo para a expansão das redes de transmissão é outro ponto crucial. Com mais de 80 GW de projetos solares em planejamento apenas no Nordeste, novas linhas de transmissão são necessárias para acomodar esse crescimento e evitar desperdícios, como os casos de constrained off, onde a energia gerada não é aproveitada devido a limitações de escoamento das linhas de transmissão existentes.

Parques híbridos, que combinam energia solar e eólica, solar e biomassa ou hidrelétrica com solar, também apresentam potencial significativo para melhorar a disponibilidade de energia.

E para além dos aprimoramentos da geração e da transmissão, está a gestão da demanda de eletricidade. Para consumidores de grande porte, a resposta voluntária é uma estratégia importante para equilibrar a curva de demanda. Neste sentido, é bem-vinda a aprovação pela diretoria da Aneel (Agência Nacional de Energia Elétrica) de um leilão de resposta da demanda. Nessa iniciativa, consumidores se comprometem a deslocar o consumo de energia de períodos de pico em troca de compensações financeiras. Já para consumidores de menor porte, recomendam-se tarifas dinâmicas, que refletem os custos reais de geração de energia em diferentes momentos do dia, como iniciativa para contribuir para uma gestão de energia mais eficiente.Para além da gestão da demanda, cabe priorizar uma série de políticas públicas de eficiência energética no setor elétrico brasileiro, sendo fundamental a formulação de um plano estruturado que defina objetivos, indicadores e metas para o setor e por programa e ação, além de mecanismos de monitoramento e avaliação periódicos. O aprimoramento dessas políticas tem potencial para beneficiar consumidores residenciais (incluindo famílias de baixa renda), municípios e toda a cadeia produtiva do país. Isso porque favorecem a eficientização da iluminação pública, a disponibilização de equipamentos, máquinas e edificações energeticamente mais eficientes, e a redução do consumo de energia em processos industriais energointensivos. Para os consumidores residenciais, o uso de coletores solares em substituição ao chuveiro elétrico merece destaque como opção de custo acessível, já empregada em programas populares como o Minha Casa, Minha Vida e capaz de endereçar diretamente a redução da demanda no horário de pico entre às 18 e 22 horas. De acordo com a Agência Internacional de Energia (IEA), o Brasil tem a quinta maior capacidade instalada global em sistemas solares térmicos.

Recomendações

Assim como em 2021, diversos agentes do setor aproveitam a volta do cenário hidrológico para advogar por termelétricas inflexíveis a gás, carvão mineral ou mesmo nuclear. Cabe reforçar novamente que o sistema a ser alcançado, além de resiliente, deve ser flexível, de forma a conciliar a geração renovável flutuante aos momentos de complementação de potência com as medidas e tecnologias mencionadas anteriormente. A implementação desta recomendação, além de garantir mais eficiência, permite uma avaliação sobre os efeitos refletidos na população mais afetada pelas mudanças climáticas, que já enfrenta desafios para pagar sua conta de luz e atender suas necessidades básicas.

A crítica ao atual sinal econômico para as fontes energéticas aponta para a necessidade de remunerar adequadamente os agentes do sistema. Os aprimoramentos tecnológicos e o equilíbrio entre as fontes só serão bem-sucedidos se forem amarrados com a remuneração correta dos agentes do sistema e dos atributos oferecidos pelas fontes. Outro passo é a  adaptação das hidrelétricas para além da oferta de energia elétrica tradicional. A operação estratégica dessas usinas pode fornecer novos serviços de armazenamento de energia e atender à demanda de potência em momentos críticos, equilibrando a variabilidade das fontes solar e eólica.

Em resumo, o Brasil tem condições de aumentar a resiliência de seu sistema elétrico com um planejamento cuidadoso e a implementação de políticas públicas que incentivem a continuidade da integração das fontes renováveis. Esse aumento de segurança passa pela inserção de sistemas de armazenamento de energia, modernização da infraestrutura de transmissão e estabelecimento de sinais de preços que reflitam os custos e benefícios reais das diversas fontes energéticas. No curto prazo, o atendimento da demanda de pico deve contemplar mais medidas de gestão da demanda e os leilões de potência devem acelerar a inclusão de sistemas renováveis como alternativas que contribuem à velocidade de resposta e à descarbonização do sistema. Espera-se que as ações sejam urgentes, de forma a endereçar as atuais limitações do sistema elétrico em responder a condições climáticas extremas e índices pluviométricos abaixo da média.