Mitigação de emissões deve mirar na qualidade do ar, mostra painel na COP26

IEMA, parceiros da Coalizão Respirar e organizações debatem agenda comum entre meio ambiente e saúde pública

Embora esteja ainda distante de entrar na agenda prioritária das políticas públicas, a poluição do ar é um dos maiores inimigos do clima e da saúde pública simultaneamente, com efeitos especialmente graves em áreas urbanas e rurais da América Latina. Mas o poder público deixa de priorizar a pauta e de enxergar a urgência de agir enquanto a poluição não é devidamente medida. Esse foi o recado principal do painel “O cenário e desafios da qualidade do ar na América Latina e sua relação com o dia a dia da população”, realizado em 10 de novembro em durante a Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas de 2021 (COP26) em Glasgow, Escócia. 

Adequar a qualidade do ar nas grandes aglomerações urbanas brasileiras às recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS) é um dos objetivos do Instituto de Energia e Meio Ambiente (IEMA), que participou do evento junto com o Instituto Alana e além de líderes de iniciativas da sociedade civil parceiras e do Chile, que apontam caminhos que outros países podem seguir. O IEMA e o Alana são integrantes da Coalizão Respirar, rede que congrega mais de vinte organizações da sociedade civil que atuam conjuntamente na defesa da qualidade do ar e no combate à mudança climática no Brasil.

A discussão pode ser acompanhada na íntegra: https://www.brazilclimatehub.org/events/o-cenario-e-desafios-da-qualidade-do-ar-na-america-latina-e-sua-relacao-com-o-dia-a-dia-da-populacao/

Caminhos para ampliar o monitoramento

A gestão da qualidade do ar, conforme explica David Tsai, coordenador de projetos do IEMA, é um ciclo de ações que envolve estabelecer metas baseadas na ciência médica, definir caminhos para reduzir as emissões, desenvolver estratégias de controle, implementar programas e realizar o monitoramento constante dos resultados. E tudo isso deve ser atualizado na medida em que a ciência avança e gera dados mais precisos. 

Em 2021, a OMS atualizou os limites para poluentes no ar em relação aos parâmetros publicados em 2005. Em função dessa mudança, diz Tsai, todo o sistema de monitoramento e gestão deverá ser adequado para responder adequadamente às seguintes questões: Quão longe estamos das recomendações de saúde? Quais as fontes de emissão de poluentes? Quais as medidas de mitigação de emissões mais adequadas? O que está faltando na gestão pública?

David Tsai mostrou como funciona hoje no Brasil o monitoramento e gestão da qualidade do ar. Cada estado é responsável pelo seu monitoramento, e pela implementação de outros diversos instrumentos. Os inventários nacionais de emissões de gases apontam quem está emitindo. Uma tabela do Ministério do Meio Ambiente de 2009, que aplica as cores do semáforo para sinalizar o status do sistema, mostra uma predominância da cor vermelha na maior parte do país. Apenas no Sudeste há predominância da cor verde. Na leitura do especialista do IEMA, isso é fruto de um problema estrutural que impede um melhor uso dessas ferramentas.

Uma das grandes contribuições do IEMA nesse sentido é manter na internet, periodicamente atualizada com dados que deveriam estar prontamente disponíveis ao público, uma plataforma com informações coletadas por cada estado. Ela permite relacionar eventos específicos com a variação diária dos índices de poluição que o próprio poder público e a sociedade de modo geral podem usar, sem custo, para dialogar, ativar e cobrar ações.

Mas só é possível gerar dados a partir de estações de monitoramento e estas não estão suficientemente distribuídas pelo território. Ao contrário, diz David Tsai, a distribuição é desigual e insuficiente, especialmente na região Norte, justamente onde ocorrem mais queimadas. Não por acaso, ressalta o especialista, há estudos científicos que mostram o agravamento de casos críticos de Covid-19 em razão da poluição do ar no Norte do Brasil. “É fundamental que tenhamos uma boa rede de monitoramento.”

“Uma de nossas frustrações foi o não cumprimento de uma promessa do Governo Federal, no início da gestão, de instalar monitores em todas as capitais”, acrescenta David. “Permanecemos nessa expectativa.”

Uma adequada coordenação de ações de aprimoramento desse sistema depende da criação de uma política nacional de qualidade do ar para o Brasil, que preveja fundos para investimento específicos, recursos garantidores e sanções para o não cumprimento de normas. Além da cooperação com outras organizações da sociedade civil, com seu conhecimento técnico complementar, favorece o cenário o fato de já existir um projeto de lei de 2018 na Comissão de Meio Ambiente da Câmara dos Deputados. 

“Matador silencioso”

O monitoramento e medição da qualidade do ar foi apontado pelos painelistas como ponto indispensável para a gestão do problema. Loreto Stambuk, diretora do projeto Aires Nuevos, da Fundação Horizonte Ciudadano, do Chile, apresentou resultados de ações de monitoramento da qualidade do ar respirado por crianças em oito países, por meio de 120  sensores instalados em lugares como escolas, pré-escolas, parques e orfanatos. Segundo Stambuk, o que se constatou é que “nenhuma cidade tem bom ar para as crianças”. 

Além de produzir relatórios, em parceria com universidades e governos locais, em cada país a sociedade civil tem usado esses dados para realizar ações educativas nas escolas e intervenções urbanas para orientação da população, inclusive no sentido de se locomover pela cidade evitando as rotas de ar mais poluído.

Florencia Ortúzar, advogada na Associação Interamericana de Defesa do Meio Ambiente (AIDA ), de Santiago, também no Chile, diz que a poluição do ar é um “matador silencioso” que afeta a grande maioria das pessoas no mundo todo sem que percebam e pode ser hoje o maior desafio para as políticas públicas locais na América Latina, onde em geral as cidades são muito poluídas. “Uma em cada oito mortes está relacionada à poluição. A poluição afeta todos tipos de células e pode causar uma lista extensa de doenças”, diz Florencia. Apesar disso, ainda não há políticas públicas integradas mirando esse problema. 

Segundo Ortúzar, a urgência da questão climática abre uma oportunidade para os governos olharem para a poluição do ar com outros olhos, uma vez que o clima e a saúde têm como inimigos comuns quatro contaminantes de vida curta: o carbono negro, o ozônio troposférico, o metano e o HFC. Trata-se de uma oportunidade porque políticas integradas de mitigação de emissões resolverão tanto a qualidade do ar quanto a questão climática.

Por meio de uma abordagem integrada, diz Florencia, a projeção é que até 2030 a América Latina consiga reduzir a emissão de metano em 40% e a de carbono negro em 80%, o que contribuiria para evitar um aumento de 0,5 °C na temperatura global. A redução de emissões de HFC, por sua vez, evitaria outro 0,1 °C adicional. 

Direito ao céu azul

Na visão do Direito, a poluição do ar pode ser vista como uma infração aos direitos humanos uma vez que priva as pessoas, inclusive as crianças, de respirar ar puro e ver o céu azul, como deveria ser. Segundo Ortúzar, uma das razões para a poluição ser um mal não suficientemente combatido é que em locais poluídos as pessoas estão habituadas a ver a paisagem cinza como se fosse natural. 

Segundo JP Amaral, coordenador do programa Criança e Natureza no Instituto Alana, 93% das crianças do mundo todo respiram ar poluído. Em geral, diz Amaral, as crianças são mais afetadas pela poluição que os adultos porque inspiram o dobro de ar, têm o rosto em uma altura mais próxima à dos escapamentos dos veículos e têm tubos respiratórios mais estreitos, o que os torna mais suscetíveis ao entupimento com partículas. Além disso, estudos já mostram que a poluição alcança a placenta da gestante. Disso resultam mais de 630 milhões de mortes de crianças com menos de cinco anos de idade por ano, segundo Amaral.

Entre as origens da poluição do ar na América Latina, além dos escapamentos de veículos individuais e coletivos, estão as queimadas e incêndios florestais, especialmente na Amazônia. Hoje, diz Amaral, 60% do material particulado no Brasil vem do fogo na Amazônia. Além da evidente urgência de combater o fogo na floresta, o poder público precisa atuar também na renovação das frotas do transporte público.