A estreita relação da qualidade do ar com o coronavírus

Como a poluição do ar agrava a pandemia e o que esta pode nos ensinar para enfrentar o problema

Por David Tsai*

Por mais de um mês até o presente momento, a cidade de São Paulo tem vivido uma situação inusitada de drástica redução no nível da atividade de transporte em resposta ao advento do coronavírus. Assim como observado ao redor do mundo, aqui também começamos a perceber que a pandemia tem contribuído para que uma outra preocupação da Organização Mundial da Saúde (OMS) fosse colocada em evidência, ao menos temporariamente, a poluição do ar nas cidades.

Com relação à qualidade do ar, a OMS é a maior referência técnica que recomenda quais são os níveis máximos de concentração de poluentes no ar que não devem ser ultrapassados para proteger a saúde da população. Em grandes cidades brasileiras onde a qualidade do ar é monitorada, é comum termos a ultrapassagem, muitas vezes todos os anos, desses níveis recomendados pela organização. Tais picos de poluição variam de acordo com o poluente e as condições meteorológicas do período. De modo geral, dois poluentes críticos chamam a atenção por frequentemente estarem acima do indicado: as partículas inaláveis e o gás ozônio.

A Companhia Ambiental do Estado de São Paulo (CETESB) publicou uma nota observando que a qualidade do ar, de fato, apresentou melhoras significativas nos primeiros dias de isolamento social. A partir dos dados da companhia, a pesquisadora Maria de Fátima Andrade, professora do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas da Universidade de São Paulo (IAG-USP), também detectou uma redução significativa de poluentes diretamente ligados à emissão veicular, incluindo cerca de 30% de partículas inaláveis. A pesquisadora ressalta que o período ainda é curto para ter conclusões mais apuradas, uma vez que o comportamento da atmosfera é influenciado por fatores como o papel das chuvas e dos ventos no período, já que ambos são mecanismos de remoção e dispersão de poluentes da atmosfera.

O IEMA também investiga a questão apurando os dados da rede de monitoramento da qualidade do ar em operação na região metropolitana de São Paulo. Analisando as séries históricas de concentração de partículas inaláveis finas e gás ozônio, observamos que o desafio é imenso. As partículas inaláveis finas apresentaram nítidas reduções nos níveis monitorados a partir da segunda quinzena de março, quando o distanciamento social começou a ser praticado. Houve reduções significativas na frequência histórica de ultrapassagens das recomendações da OMS. A estação Grajaú-Parelheiros é um exemplo.

No entanto, o mesmo não foi constatado quanto ao ozônio. As estações que monitoram esse poluente com representatividade da escala urbana, aquelas mais distantes das fontes emissoras, mostraram comportamento similar aos três últimos anos com frequentes ultrapassagens das recomendações da OMS. Porém, uma das estações localizada em Itaquera, zona leste da capital, chamou a atenção por apresentar ultrapassagens mais frequentes neste ano do que nos três anos anteriores. Chegando, aliás, a ultrapassar o padrão de qualidade do ar adotado pelo estado de São Paulo e alcançando o índice “muito ruim” de qualidade do ar.

Esse contrassenso pode ser objeto de investigações mais aprofundadas. O ozônio é um poluente secundário, ele não é emitido diretamente a partir dos processos de queima de combustíveis, sua complexa formação ocorre a partir da combinação de um conjunto de outros poluentes, chamados de poluentes precursores, e certas condições atmosféricas. Às vezes, ao se reduzir as emissões de certo poluente precursor em relação a outro poluente precursor, pode-se ter um aumento na formação do ozônio.

Infelizmente, não poderemos obter esse tipo de informação por todo o país. As redes de monitoramento da qualidade do ar no Brasil se apresentam, de forma geral, insuficientes e desprovidas de tecnologias que permitam informar ao cidadão, em tempo real, a qualidade do ar. O estado de São Paulo é praticamente a única exceção. Vale destacar que a maioria dos estados brasileiros está sem monitoramento da qualidade do ar de maneira oficial. Além de São Paulo, têm monitoramento (em diferentes níveis de abrangência): Bahia, Ceará, Sergipe, Distrito Federal, Espírito Santo, Goiás, Minas Gerais, Mato Grosso do Sul, Paraná, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul.

Mas, sim, uma melhora no ar que respiramos era esperada com a quarentena nos centros urbanos. A principal causadora da poluição do ar na cidade é tipicamente a atividade de transporte, com destaque para o uso do automóvel. Com muitas pessoas nas suas casas, uma boa parcela dos carros deixou de circular e, portanto, emitir poluentes. Um relatório do Google revela, a partir de dados de localização de celulares, tendências de mobilidade para o trabalho reduzidas em mais de 40% e para compras e recreação maiores do que 70% no estado de São Paulo. O índice de mobilidade do Google para o transporte público também mostrou queda de mais de 60%.

Em contraponto a essa imobilidade voluntária ou consentida e na contramão de medidas antiaglomeração, infelizmente vimos que a frota de transporte público circulando em cidades como São Paulo foi reduzida, contribuindo com a geração de aglomerações nos ônibus e nos pontos de parada. Como consequência, expondo a parcela da população mais vulnerável aos riscos de contaminação e aumentando as chances de disseminação do vírus.

Há ainda um aspecto fundamental a se atentar na relação da poluição do ar com o coronavírus. Muitas das condições de saúde pré-existentes, que aumentam o risco de morte por Covid-19, são as mesmas doenças afetadas por exposição à poluição do ar a longo prazo. A Coalizão Clima e Qualidade do Ar, um grupo formado por governos e cientistas de diversas partes do mundo orientados para o enfrentamento da poluição do ar, alertou que estudos preliminares mostram que impactos à saúde devidos à poluição do ar – incluindo doenças respiratórias, cardiovasculares e até diabetes – aumentam a vulnerabilidade ao Covid-19. Reforça-se, aí, ainda mais a necessidade de se ter ar puro nas cidades. Há poucos dias, um estudo publicado pela Universidade de Harvard concluiu que cidades poluídas tendem a apresentar casos mais graves da Covid-19. O estudo aponta que há correlação entre a poluição do ar e a tendência dos seus habitantes, que por anos estiveram sujeitos a respirar o ar poluído, a desenvolver quadros mais severos da doença.

Isso acende um alerta com a chegada do tempo seco nos próximos meses, quando a poluição do ar tende a se agravar e é sabido o aumento no caso das recorrências ao sistema de saúde por problemas respiratórios. Como exemplo, podemos observar as concentrações de partículas inaláveis finas na zona leste de São Paulo – estação de monitoramento da qualidade do ar de Itaim Paulista -, cujos níveis chegaram a alcançar nos últimos anos quase 4 vezes os valores estipulados pelas diretrizes da OMS.

Mas além da queima de combustíveis em ambiente urbano, um segundo agravante da qualidade do ar deve ser levado em conta no Brasil: as queimadas florestais. Encravada na floresta amazônica, a cidade de Manaus, apesar de atualmente não contar com uma única estação de monitoramento da qualidade do ar, sofre anualmente com nuvens de fumaça. Essas são detectadas pelo Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon) através de imagens de satélite.

Segundo apurado pela Revista Piauí, Manaus registrou nos últimos 3 anos uma média de 29 internações diárias no SUS por problemas respiratórios, de acordo com o Ministério da Saúde. Para este ano, os pesquisadores do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM) têm expectativa de uma temporada de fogo intensa na Amazônia, decorrente do aumento do desmatamento em 2020, somado à vegetação derrubada em 2019 que não queimou, conforme nota técnica publicada na semana passada. Assim, uma pressão ainda maior deve sofrer o já colapsado sistema de saúde do Amazonas, com o esgotamento da sua capacidade de atendimento.

Contudo, precisamos tirar boas lições deste momento. O desligamento temporário de atividades econômicas em várias cidades no mundo mostrou que a qualidade do ar pode melhorar muito rapidamente assim que as fontes de poluição são suprimidas. Não se trata aqui, obviamente, de tomar a redução da atividade econômica como uma solução sustentável. Assim como boa qualidade do ar é condição necessária para o bem-estar social, plena atividade econômica também é meio imprescindível para tal.

Vale refletir em como, à frente, “reconstruir melhor” (“build back better”), abordagem adotada na recuperação a desastres, e repensar o viver na cidade. Reconstruindo um espaço, dessa vez, menos desigual e proporcionando um ambiente saudável. Fazem falta medidas e atitudes que conciliam a necessidade de mobilidade das pessoas na cidade com a urgência da redução das emissões de poluentes, como o uso mais eficiente dos modos de transporte. Ou seja, deslocar-se o quanto necessário, mas poluindo menos e consumindo menos combustíveis. Para tanto, as mais atuais diretrizes de planejamento urbano indicam que devem ser priorizados o transporte ativo (caminhada e bicicleta), seguido do transporte coletivo (ônibus, metrôs e trens) e, por último, o automóvel. Esse ocupa o maior espaço na via por passageiro transportado, gerando congestionamentos e elevados tempos de deslocamento pela cidade, além de apresentar maior gasto energético e emissão de poluentes.

* Tem formação em Engenharia Química e Geografia e trabalha no Instituto de Energia e Meio Ambiente (Iema), organização que se dedica a qualificar os processos decisórios para que os sistemas de transporte e de energia assegurem o uso sustentável de recursos naturais com desenvolvimento social econômico.